António Feio, sorrisos e paixão
Merda de vida. Merda de vida. Merda de doença rasteira, rastejante, que se infiltra nas entranhas e vira a vida do avesso até que de repente a alma voa e, sem base física que a sustente, o corpo parte com ela.
Estes casos acontecem todos os dias com pessoas que não conhecemos mas quando conhecemos alguém de perto ou se se trata de alguém mediático por quem sentimos carinho com se fosse
lá de casa, ou quando é
alguém perto, demasiado perto, dói a notícia como um murro no estômago e tornamo-nos cientes da (também nossa
) mortalidade e finitude.
Além da coragem com que o António Feio lutou ao fim - e isso faz dele um vencedor a toda a linha - ressalto a dimensão humana e a simpatia. E o mau génio (o nome correcto é auto-respeito) quando alguém manifestava não respeitar o seu trabalho. Lembro-me de uma das vezes em que assisti a uma das peças protagonizadas por ele e pelo velho companheiro de lutas e palcos Zé Pedro Gomes na qual, perante uma assistência repleta e intranquila devido a vários acessos de tosse de um espectador - coitado, podia acontecer a qualquer um - e vendo que o dito insistia em permanecer na sala, não tendo a iniciativa de se retirar o tempo suficiente até a coisa acalmar - o António Feio, às tantas diz, de cima do palco e fitando a plateia de repente muda e queda, alto e pára o baile que assim não há condições para trabalhar e o espectáculo termina já aqui. E sai de rompante palco fora em direcção aos bastidores. Zé Pedro segue-o e após breves ou longos minutos o António Feio regressa ao palco (a plateia continuava muda e queda) continua a peça sem mais delongas, no exacto ponto onde a interrompeu.
Profissional. Os outros actores continuaram também com enorme profissionalismo, como se nada tivesse acontecido e certo é também que a tossezinha irritante não mais se ouviu.
Este texto é de lamento, de louvor e de recordações pessoais também. O meus dois avós (avô e avô) foram levados, à distância de mais de 40 anos, por doenças
más e uma das minhas avós teve cancro da mama aos 80 anos sobrevivendo ao bicho, perdeu uma parte física de si mas sobreviveu sem sequelas ou inquietações demasiadas. E eu continuo a sentir-lhe a falta e a presença passados 10 anos.
Morrer é só não ser visto, como diz o livro e o poema.
É também paradoxalmente de esperança este arrazoado. Várias pessoas que conheço lutaram ou lutam com sucesso contra a doença. E vão conseguir vencer. Sei felizmente de vários casos que tiveram remissão e mesmo cura mas ao António Feio não coube essa sorte, esse destino. Há histórias para todas as esperanças.
Ao António Feio: Que repouse em paz e em luz, continuando a distribuir, lá onde estiver, sorrisos contagiantes, esperança divina e essa grandiosa humilde e rara humanidade.
Etiquetas: vidas