A Intenção
"Ó Feliciano, tu não vês que o que elas querem é só uma coisa?" E procurava, nas calças, o que lhe parecia faltar. Dinheiro. Lá achou a carteira, inchada de moedas e cartões de que não necessitava, mas lhe avolumavam a credibilidade, pensava ele lá no fundo, embora ainda mais no fundo achasse que não. E ele era o cartão de sócio da Proteste, o de sócio dos bombeiros, o cartão mais do jumbo, e, bem à vista bem usado quase falido, o multibanco. Dinheiro que é bom e elas gostavam, só uma pouca nota de 2 contos.
Assim não chegava lá, acabrunhava-se António e revoltava-se contra a triste vida que lhe coubera em destino. E olhava, com raiva contida, os outros, os que a tinham grande, que ele bem sabia que o volume da sua não lhe agendava encontros, nada, comparada com a do Senhor Arquitecto que vivia em frente e era casado com uma mulher esplendorosa e cara, via-se pelas malas, pelos sapatos que lhe esguiavam as pernas.
Como é que ele, António, podia dar a uma mulher daquelas, ou das outras, que isto hoje são todas iguais, lindas ou pacóvias, todas se julgam no direito de ter ouro e jóias e jantares fora, como é que ele podia, com o seu cada vez mais emagrecido salário de guarda florestal (como se não bastasse tê-la pequena, a carteira, ainda tinha de passar o dia desterrado em terra de árvores, que sorte, carago), como é que ele podia dar a uma mulher o que ela precisava? Pois se estava provado que elas precisavam disso... de jantares, uma ida ao cinema, de se mostrar numa sala de teatro, ir para a esplanada na praia e folhear a Maria, ou já a Caras.
Não, estava mais que visto que assim não chegava lá. Mas inconformado com a sua sorte permanecia António. "As coisas têm que mudar, então? Também tenho direito ao que é bom!", dizia ele ao seu companheiro de café, o Feliciano, que, calado e com ar sonso de bom ouvinte, bebia a gasosa com cheirinho a tintol enquanto fitava, entendido, as mulheres que passavam do lado de fora do tasco.
"Ó homem, acorda! Deixa lá quem passa, parece babado, nunca viste uma mulher?...", lançava, mais a jeito de quem fala para si que para o Feliciano, que dia sim, dia não, lhe aturava as lamúrias, mas que lá se desenrascava, com uns esquemazitos mais ou menos bem montados.
"Tenho 40 anos", continuava António. "E tu queres crer que não sinto mulher, daquelas que a gente sabe, há mais de...Olha, desde sempre.." E desmoronou-se o rosto do António. O Feliciano desviou o olhar da rua e finalmente encarou, como se tivesse realmente acabado de acordar, o pobre do outro, que desfiava a mágoa e desafiava a felicidade a procurá-lo.
Nunca o tinha visto assim, tão de rosto caído. É verdade que não havia dia em que se encontrassem que o António não se queixasse disto e daquilo, da solidão, das mulheres fáceis que encontrava na noite, do pouco tostão ao fim do mês, mas já se sabia que aquilo já nem era defeito, era feitio, e passava-lhe com umas cervejolas e um uísque ao fim de semana. E assim os dias assim rolavam, iguais e certos.
Mas hoje o homem parecia decidido a qualquer coisa.
O Feliciano assustou-se. Homem pacato como era e pouco dado a desacatos, intuía da conversa do outro uma intenção que perscrutava discretamente no rosto do António.
"Isto tem de mudar", continuava António, em cujo olhar o do agora atento Feliciano se demorava. "Vou mudar de vida", rematou misteriosamente.
Feliciano permanecia calado.
O outro calou-se com a conversa das queixas e mudou para a prima Rosalina, que era como uma irmã para ele, tanto assim, que uma vez por mês se deslocava de Almada para o Bombarral e lhe ia dar um jeitinho à casa e engomar-lhe as 4 camisas que ele vestia por mês, em dias domingueiros. A prima Rosalina, sim, uma irmã...Nas sextas em que ela vinha, o António saía mais tarde de casa para o trabalho e chegava a hora de lanchar com ela. A prima Rosalina era casada com o tio Vicente.
O tio Vicente desconhecia estas andanças da mulher Rosalina na última semana de cada mês. Rosalina era mulher honrada, claro, mas o tio Vicente, com quase 80 e enriquecido à custa do ferro velho estava a tornar-se desconfiado e forreta. A idade não perdoa.
Feliciano arregalava os olhos normalmente mortiços e continuava calado. Já sabia o que a casa gastava e que, atrás das benditas aparências do santo António, jogavam-se calculadas estratégias.
António parecia mais repousado, agora que falava na prima-irmã. Devia ser da gratidão que lhe votava; afinal quantas primas ou estariam dispostas a ajudar assim os primos, por muito irmãos que fossem?...
Feliciano olhou-o, desconfiado de tanta gratidão.
Mas o alarme que vinha crescentemente sentindo aumentou quando António, mudando de novo o rumo e o tom à conversa, disparou de chofre: "Ó Feliciano, tu não vês que o que elas querem é isto?" E apontou para a carteira que jazia, abandonada nos bolsos das calças.
E sondando-o ao de leve, sim, que o António não era tanso e o Feliciano nem por isso, saiu-se de mansinho..."Ó Feliciano, um homem de 80 anos, com tanto dinheiro, já viveu o que tinha a viver..."Escrevi este texto há uns bons e largos anos e descobri-o em pleno processo de arrumações. Gosto dele, tb porque foi escrito no intervalo de um trabalho que estava a fazer no pc e que de repente teve de ser interrompido pelo acima transcrito imperativo que entrou por ali dentro. Ah, a propósito não sei se o Bombarral fica muito longe de Almada, mea culpa ignorante; quanto ao guarda florestal foi metido ao barulho sabe-se lá como, não me esforcei muito e isso foi o melhor e agora com licença, vou fechar a loja e ligar o alarme.
Que sono. Boa noite.