A mão no fogo. A incoerência. A sua necessidade. A necessidade da coerência. O desafio.
Li o livro
Fora do Mundo, de Pedro Mexia, cujo nome o autor pediu de empréstimo ao
blog onde alinha actualmente, partilhando o espaço da escrita com Francisco José Viegas e Pedro Lomba e agora li e copio um texto do blog, escrito precisamente pelo mesmo Pedro.
Lúcido, pouco dogmático, aberto, crítico.
Estou absolutamente perplexo com o que alguma gente esclarecida tem escrito sobre a necessária «coerência» entre a moralidade privada e a ideologia política. Essa argumentação não dura dez minutos. Quase não existem pessoas coerentes na sua vida privada com os valores que (convictamente) defendem. Eu sou católico, e conheço bem o universo de hipocrisia que é o catolicismo. Mas também sou amigo de pessoas declaradamente progressistas, que me dizem e confessam toneladas de sentimentos e episódios nada progressistas. Eu próprio me considero conservador, e tenho escrito coisas francamente menos conservadoras que alguns blogues progressistas (para me ficar pelo escrito). A incoerência é normal, inevitável, e não tem mal nenhum. Ninguém é coerente. Excepto talvez uns monstrozinhos. Há com certeza casos flagrantes em que a hipocrisia tem interesse público (o televangelista que vai às putas), mas apenas porque os próprios se arrogam o direito de vigilantes da hipocrisia alheia e fazem disso uma arma política. Pela minha parte, sei que a moralidade privada é um território completamente à parte, mesmo porque raramente obedece (digamos assim) à mesma área do cérebro do que a ideologia. Quando começou o escândalo Casa Pia, começaram pessoas a «pôr as mãos no fogo» por outras pessoas. Escrevi na altura que não se pode «pôr a mão no fogo» por ninguém. Nós não conhecemos o que vai dentro da cabeça das pessoas. Não sabemos do que as pessoas gostam. Do que são capazes. Não sabemos sequer do que gostamos ou somos capazes. É muito engraçado ver pessoas (e pessoas supostamente progressistas) a fazerem discursos morais (e sexuais) com tudo metido em caixinhas muito estanques e muito arrumadas. Como se a moralidade (e a sexualidade) não fosse precisamente o lugar do caos, da incoerência, do fragmento, do que não sabemos, do que queremos saber, do fictício. Mais do que a luta política, o que me preocupa é essa mistificação que faz da moralidade e da sexualidade formas de transparência, quando na verdade são grandes zonas inóspitas e opacas sobre as quais apenas devemos falar por aproximações. Tanta certeza sobre coisas que não se sabem, tanto sumo pontífice «reaccionário» e «progressista». Gente imensamente «sã», «louçã», «saudável» e «normal». Que maravilha fatal. [P.M.]
nota: o sublinhado a negro é meu.