Quantas formas de violência existem? II
No dia 27 de Novembro passado, o PÚBLICO deu à estampa um artigo de opinião intitulado "Notícia da mulher que deixava a comida esturricar ", na coluna Semana Política, seguido de outro, em 30 de Novembro, sob o título "Estalos e pontapés", na coluna Comentário, ambos versando o desfecho de um processo penal em última instância. O conteúdo dos dois artigos suscita esta resposta e estamos certos de que o PÚBLICO dispensa sublinhados especiais de natureza legal para a sua publicação.
O processo judicial visado entrou no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) como recurso relativo à pena decidida em primeira instância face a um dado crime de homicídio em que o recorrente é o arguido: catorze anos de prisão em cúmulo jurídico, confirmados pelo recurso intermédio a um tribunal de Relação e reduzidos para 11 anos no acórdão do STJ.
Diz o primeiro daqueles artigos (já que o segundo se limita a um comentário, mas em idêntico seguimento) que o acórdão do STJ em causa "refere que não terão sido alheias ao crime as condutas anteriores da vitima", tais como "levantamentos bancários deixando as contas do casal a zero", e que constituiu "atenuante do crime de homicídio o facto de a vítima ter deixado algumas vezes esturricar a comida que confeccionava"'. Nas palavras do articulista, "para os juizes do Supremo na democracia de 2004, é atenuante do crime de homicídio ir ao café ou não avisar o marido de uma saída" e a vitima ter chegado "a mostrar a barriga quando se encontrava junto de pessoas amigas", entendendo ainda que "os juizes admitem serem os
comportamentos resultantes dos problemas psíquicos da vítima decorrentes da morte de uma filha do casal", para acentuar que estes aspectos comportamentais foram reduzidos pelo STJ "à simplória categoria de desavenças conjugais", nos termos do mesmo acórdão.
Afirma ainda o articulista que "foram dados como provadas agressões do arguido à vítima - `insultos, murros, estalos e pontapés que a suprema judicatura considera irrelevantes para o assunto, reduzindo-as à simplória categoria de desavenças conjugais"', e acrescenta que o STJ "considera conduta atenuante de um homicídio o deixar esturricar a comida" para concluir que "a violência doméstica é um crime público" e que "o acórdão do Supremo viola, evidentemente, o espírito da lei".
Ora, o teor do(s) artigos) em apreço deturpa totalmente a verdade. Sobre os factos descritos aquele acórdão do STJ (n °3250/04-3) - mesmo apenas pela leitura linear das passagens alheias aos aspectos técnicos - permite entender que o STJ não só não os considerou atenuantes, como, bem pelo contrário, deixa claro que o recorrente pretendeu "empolar" algumas atitudes da vítima como circunstâncias atenuantes. Por isso, o colectivo do STJ acentua que recusou atendê-las e que, da sua análise, "não resulta qualquer motivação susceptível de justificar atenuação especial da pena".
No fundo e em rigor, o STJ nem sequer atenuou a pena. O que um colectivo de juízes-conselheiros fez, como lhe competia, foi reponderar a aplicação da lei ao quadro real envolvente de um arguido concreto (análise ao comportamento conjugal e diagnóstico psiquiátrico do casal, comportamento social e familiar, responsabilidade paternal, etc.), do que resultou o seguinte: redução de 13 para dez anos de prisão pelo crime de homicídio; acresce um ano de prisão pelo crime de violência doméstica (no caso, "maus tratos a cônjuge"), aplicado em primeira instância e que não foi objecto de recurso. Por outras palavras: o recorrente reclamava sobre a pena de homicídio, sem apelar da decisão pelo crime de violência doméstica.
De qualquer modo e como é habitual, o STJ está sempre disponível para prestar todos os esclarecimentos sobre quaisquer decisões de última instância e respectivos fundamentos, no sentido de facilitar o mais amplo conhecimento sobre matérias que, muitas vezes, têm um conteúdo técnico-lega nem sempre preendido com facilidade pela opinião pública.
João de Carvalho
Gabinete de Imprensa do STJ
Público de
7 de Dezembro